domingo, 27 de outubro de 2024

PREALEGADOS HISTÓRICOS

Um tempo antes na história do Sertão Botucatu
O denominado Sertão [do] Paranapanema compreendia, dentro do Vale Paranapanema, ainda em meado do século XIX, todo o território paulista anotado como terrenos desconhecidos e habitados por indígenas e feras selváticas, entre os rios Tietê e Paranapanema, desde a descida da Serra Botucatu às barrancas do Rio Paraná, quando ainda não conhecidos os Vales do Feio-Aguapeí e Peixe.
Histórica e geograficamente o Sertão Botucatu, desde 1580, com a unificação das Coroas Espanhola e Portuguesa com as respectivas colônias, não era chão de todo desconhecido, servindo de passagens aos demandadores sertanejos, identificados nos religiosos, bandeirantes, entradistas, monçoeiros e militares, caminhos poucos, apenas dois rios relativamente navegáveis, Tietê e Paranapanema, além da grande senda pré-cabraliana, a transoceânica Peabiru, do Atlântico ao Pacífico.

1. Antigos caminhos religiosos e bandeirantes
Informes historiográficos apontam que o entradista Antonio Bicudo, no ano de 1620, deixando o 'Caminho Peabiru' subiu a Serra do Botucatu e atingiu as cabeceiras do Rio Pardo, para reconhecimento territorial e preação indígena, com as primeiras descrições dos campos e matas entre os rios Guareí, Paranapanema, Tietê, morros da Serra - zona sudoeste e as nascentes do Pardo.
Tais indicativos entraram nas cartas geográficas como referências para as entradas e bandeiras pelos sertões (Bicudo, 2009).

2. Da [Estrada] Peabiru - narrativas
Genericamente o vocábulo Peabyru [Peabiru] seria o designativo de antigas trilhas indígenas - feixes de caminhos, por terra e rios, quase sempre interligados, com lugar de partida para determinado destino.
São diversos os 'peabirus' no interior brasileiro, pré-cabralianos, destacados dois deles nas regiões sudeste e sul do Brasil, um iniciado na Ilha de Santa Catarina - SC, em direção ao Rio Iguaçu - PR para seguir, pela margem direita, até o encontro com as águas do Rio Paraná.
O outro caminho, principiado em São Vicente, litoral paulista, passava pelas atuais localidades de São Paulo, Sorocaba e, do pé da serra Botucatu obliquava rumo ao Rio Paranapanema, margeando-o pela direita até o local de possível e mais segura transposição, entre os municípios hoje de Ourinhos e Salto Grande, para seguir, pelo lado paranaense, ao atual município de Peabiru, daí margear o Rio Paraná abaixo à barra do Iguaçu, para o encontro com o caminho oriundo de Santa Catarina, e daí, unificados, o traspasse do Rio Paraná, entrando em território paraguaio a caminho dos Andes [peruviano], em Cuzco (Bolívia), com prosseguintes às costas do Pacífico em Peru e Equador (Valla, 1978: 90).
A partir de Cananéia saía uma trilha indígena para, vencida a serra, chegar às proximidades da atual localidade de São Miguel Arcanjo e findar num caminho de ligação entre aquelas sendas vindas de Santa Catarina e São Vicente, passantes, grosso modo, em atuais municípios de Ponta Grossa [PR] e Sorocaba [SP]. Quase sempre os caminhantes aos Andes utilizavam a ligação Sorocaba - Ponta Grossa.
O estudioso jesuíta Aluísio de Almeida, pseudônimo do Monsenhor Luiz Castanho de Almeida, no entanto, explica um curso deslocado da estrada pré-cabraliana Peabiru, que "subiu a serra [Botucatu], ganhou as cabeceiras do Pardo (Pardinho) antigo Espírito Santo do rio Pardo e desceu aquele rio até as alturas de Santa Cruz do rio Pardo, donde passou para o afluente Turvo e saiu nos Campos Novos do Paranapanema (nome mais novo)" - (1960: 41), sem prejuízo ao trecho prosseguinte até o Salto das Canoas, a partir de onde navegável o Paranapanema.
Uma vereda portanto passava em território que viria ser Santa Cruz do Rio Pardo, servindo de trânsito aos padres espanhóis e demandadores dos sertões, desde a Serra ao Salto das Canoas, também conhecido por Paranan-Itu e Salto Dourado, no Paranapanema, em atual município de Salto Grande. Cartografia oficial de caminhos paulistas, séculos XVII e XVIII, confirma o uso do Paranapanema de sua barra ao Salto das Canoas, numa viagem com duração média de vinte dias (AESP: BDPI: Cart325602).
No referido mapa, a anotação sobre Sorocaba - SP: "Essa Villa foi feita cidade por El ReyFelipe 3º para dar-lhe o nome de S. Felipe no tempo de 
Francisco de Souza Conde do Pardo em 1611.", título nobiliárquico português, concedido por D. João III a D. Pedro de Sousa (1468-1563), mantido nos tempos filipinos pelo filho D. Francisco de Sousa, posto escolhido pelo rei espanhol D. Felipe II - I de Portugal (1580/1598) para Governador-geral do Brasil (1592-1602), conservado por D. Felipe III da Espanha e II de Portugal (1598-1621) para o governo além-mar (1608-1611), sendo-lhe prometido o título de 'Marquês das Minas', todavia, morto em 1611, sem o agraciamento.

3. A Fazenda Jesuítica

Em 1719 instalou-se na Serra Botucatu uma fazenda jesuítica conhecida por Boa Vista, para os propósitos inacianos além do comércio com os passantes, aventureiros e bandeirantes, oferecendo-lhes os padres pouso e lugar de ajustes.
Em 1721 o bandeirante Bartholomeu Paes de Abreu, primo do jesuíta reitor padre tenente Estanislau de Campos Bicudo, requereu à Câmara Municipal de São Paulo direitos em explorar uma estrada, do centro da então capitania paulista às minas de Cuiabá, calcada no leito da antiga Peabiru e da trilha jesuítica/bandeirante, ou seja, "a partir da 'ultima povoaçam', da última vila e, também, a partir do morro do Hibiticatú" (Apud, Figueiroa, 2009: Revista 4).
Sorocaba era a derradeira vila desde 03/03/1661, talvez meio século antes, conforme observado em documento 'BDPI: Cart325602' (AESP), e a última povoação admissível, a sede da fazenda jesuítica Boa Vista, núcleo habitado junto ao ribeirão de Santo Inácio, que servia de passagem rumo a Paranan-Itu aonde "um rudimentar porto para as canoas que iam e vinham" para dali se chegar, segundo Paes de Abreu, "ao rio Paraná onde instalou três roças de milho, feijão, legumes e deixou 250 bois em uma delas." (Apud Figueiroa, 2009: Rev. nº 5).
No ano de 1766, Simão Barboza Franco, encarregado pelo Morgado de Mateus da fundação de uma povoação na Serra Botucatu, acima do Rio Paranapanema, 'teria oficializado' a sede da fazenda jesuítica como Botucatu, bairro citado no Censo de 1779 para a Vila de Itapetininga, relacionando seus moradores e domicílios. Botucatu, que outro nome tivesse, seria essa última povoação de Sorocaba em 1721, mencionada por Paes de Abreu, embora desde o primeiro quartel dos anos 1700 conhecido o embarcadouro, no Paranan-Itu ou Salto das Canoas, em atual Salto Grande, mas, não era povoação, não tinha moradores por lá fixados em números que pudessem dizer uma povoação.
No aguardo da autorização, Paes de Abreu iniciou abertura de eito terrestre desde Paranan-Itu até defronte o despejo do Pardo sul-mato-grossense no rio Paraná (Giovannetti, Álbum Histórico do Município de Quatá, 1953: 1-2). Indeferido o pedido, Paes de Abreu, desgostoso e com problemas judiciais, abandonou o projeto e o que já tinha feito.
A despeito dos acontecimentos aos jesuítas, em 1759, expropriações dos bens e expulsões do solo brasileiro, não se pode excluir a tentativa das autoridades na recuperação regional botucatuense, em 1766, para levar a hasta pública a fazenda confiscada, contratado o coronel Francisco Manuel Fiúza (Gilson Bicudo, op.cit), para expulsar ou exterminar 'hordas selvagens', encargo levado a efeito com extrema crueldade, aquém e além das serras, e das nascentes e partes do curso do rio Pardo.
A missão de Fiúza foi liberar as terras e favorecer o governo abrir 'Caminho para o Iguatemi' (em atual Mato Grosso do Sul), estabelecer fazendas e sesmarias e povoar o sertão. O coronel cumpriu seu ofício entregando ao governo a fazenda jesuítica, depois leiloada, e, favorecendo a 'fundação do Bairro Botucatu', por Simão Barboza, com identificação da oraga 'Nossa Senhora das Dores em Cima ou do Cimo da Serra Botucatu'.
Pelos serviços Fiúza recebeu terras, parte "em cima da serra do caminho que se abrio para Iguatemy daquém do rio Pardo" (Donato, 1985: 45).
A fazenda, outrora dos padres jesuítas, foi levada a leilão público e arrematada aos 23 de dezembro de 1776 (Toledo Piza, 2015: 52).

4. A senda militar
Por Ato da Coroa Portuguesa, de 06 de janeiro de 1765, o rei D. José I nomeou Governador da Capitania de São Paulo, o capitão-general D. Luís Antonio de Souza Botelho e Mourão, o 4º Morgado de Mateus, encarregado em restaurar a capitania paulista, abrir ou refazer estradas, fundar cidades e povoar os sertões, arranjando guarnecer os rios Tietê, Paranapanema, Iguatemi, Paraná e Prata, a expandir fronteiras ao oeste e levantar fortalezas para proteger o sul contra os espanhóis, ainda ressentidos pelas perdas territoriais com o fim do Tratado de Tordesilhas e não satisfeitos com o Tratado de Madri.
Também o Morgado precisava entregar segura a outrora fazenda jesuítica aos arrematantes, conceder novas sesmarias e ratificar as concessões anteriores, com o livramento dos perigos indígenas, para isto contratado o bugreiro Francisco Manuel Fiúza.
A região experimentou o progresso com o fluxo de pessoas vindas principalmente de Sorocaba, Itu, Itapetininga e Porto Feliz, atraídas pela promessa de fundação de novos povoados e distribuições de terras nas cercanias e adiante da Serra Botucatu, como sentinelas avançadas e fortalezas, sendo Simão Barbosa Franco o encarregado das ações (Donato, 1985: 47-48).
Com essa visão militarista o Morgado determinou a construção da senda militar, em 1770-1771, a entrar pela Serra Botucatu até a barra do Pardo ou, mais adequado, ao Paranan-Itu, sob as ordens do capitão-mor de Sorocaba, José de Almeida Leite, para articulações com as bacias hidrográficas dos rios Tietê, Paranapanema, Paraná, Iguatemi e Prata, incentivando o povoamento do sertão e sua defesa das pensadas incursões espanholas.
O Almeida Leite prestou contas do compromisso ao Morgado, dando-o por realizado em 1772, sendo certa sua chegada à margem do Paranapanema.

5. As sesmarias -santa-cruzenses- ao longo dos caminhos
O 'Vale do Pardo' não foi apenas corredor de acesso entre a Serra Botucatu e o Rio Paranapanema. Documentos creditam-lhe grupos arranchados, desde que João Álvares de Araujo, por volta de 1730, rumou "para o sul, costeando a serra e posicionando-se além do Rio Pardo" (Donato, 1985: 44), à beira do caminho religioso/bandeirante e por onde haveria de passar, décadas depois, a senda militar.
João Pires de Almeida Taques, nos anos 1750, obteve sesmaria no Pardo "além do dito rio no novo caminho que se abriu para a Praça de Iguatemy, em tempos povoados por João Alvares de Araujo" (Repertório das Sesmarias, L. 19, fls. 121-v).
Aluisio de Almeida, confirma os aparentados João Pires, José de Almeida Leme, e Antonio Pires de Almeida Taques, sesmeiros no Pardo abaixo, e que Antonio [Pires] de Almeida Taques, em 1770, beneficiara-se de terras à margem esquerda do mesmo rio (Repertório das Sesmarias, L. 21, fls. 46).
Claudio de Madureira Calheiros, em 1771, requereu sesmaria, adiante daquela do sogro Vicente da Costa Taques Goes e Aranha, a acompanhar o Turvo, margem esquerda, à sua barra no Pardo (Repertório das Sesmarias, L. 21, fls. 70). Desta forma, as sesmarias à direita do Pardo "já estavam ocupadas por Vicente da Costa Taques (...), e por Francisco Paes de Mendonça e Jeronymo Paes de Proença, c. 1779" (Pupo e Ciaccia, 1985: 23), no citado o caminho para o Iguatemy via Rio Grande [Paraná].
Acima destes situavam-se João Alvares, Antonio Machado e o Capitão [João] Pires [de Almeida Taques], e daí um vão até as terras sesmadas do citado Claudio Madureira Calheiros, do qual ciente Manoel Correa de Oliveira que, em 1780, pediu o chão entre aquelas sesmarias sobrando-lhe "as terras do espigão entre o Pardo e o Turvo, até a barra deste naquele." (Pupo e Ciaccia, 1985: 22-23). O Repertório das Sesmarias (L 21 fls. 100 e L 25 fls 96-v) ratifica os nomes daqueles relacionados sesmeiros à margem direita do Pardo, e confirmadas, também, as sesmarias concedidas do espigão à margem esquerda do Turvo, e, do outro lado deste, nenhuma sesmaria notada.
Mais para o 'Vale Paranapanema', pela antiga Peabiru, a Sesmaria das Antas, "em Lençóis, onde hoje está a povoação da Ilha Grande [Ipaussu] no município de Santa Cruz do Rio Pardo" (Silva Leme, 1905: 403, vol. VI), concedida a Luiz Pedroso de Barros, aos 09 de dezembro de 1725, repassada a José Monteiro de Barros, avô materno do sertanista tenente Urias Emygdio Nogueira de Barros (1790-1882), que a recebeu por herança, estimada extensão de três léguas de terras, a partir da barra do ribeirão da Antas no Paranapanema, em Ipaussu, até Chavantes, no distrito de Irapé - corruptela, por entendimento fonêmico, do tupi 'Tapi'irape - Caminho das Antas', com largura de uma légua, aumentada até o morro divisor onde as nascentes do ribeirão inicial dessas dimensões.
Das fazendas e sesmarias adiante de Botucatu atestam-nas a 'Carta Provincial do Governo de São Paulo, de 12 de fevereiro de 1771', obrigando os moradores na região do Pardo prestar ajuda, em tudo que deles necessitasse, o capitão Almeida Leme, na abertura da vereda militar, concluída em 1772.
Dos restos de sesmarias, no começo do século XX, residentes sorocabanos descendentes dos Pires anunciavam a venda de 4.000 alqueires de terra em Santa Cruz do Rio Pardo (Aluisio de Almeida, 1959: 255), sem precisar exatamente o local.
Os sesmeiros, do século XVIII, pouco ou nada conheciam dos acidentes geográficos que melhor pudessem identificar suas terras; e os pioneiros vindos posteriormente, em meados dos anos 1800, melhor dimensionaram suas posses para registros, quase sempre mudando ou dando novos nomes lugares apossados, para não serem questionados por herdeiros de antigos sesmeiros que, quase sempre, nem sabiam onde, exatamente, suas propriedades.

A falência dos empreendimentos
Martim Lopes Lobo de Saldanha assumiu o governo paulista como 'capitão-general', entre os anos 1775/1782, e optou pelo abandono de tudo quanto planejara ou realizara o Morgado, seu antecessor, em Botucatu e adiante da Serra. Com o desamparo as Sesmarias não progrediram, as fazendas fracassaram e os arranchados, isolados e à mercê da crescente e ameaçadora presença indígena, retiraram-se.
Os nativos expulsos por Fiúza, em 1770, retornaram mais ou menos dez anos depois, com seus descendentes e acrescidos de outros grupos e restos tribais, para formar numerosa e preocupante população adversa ao progresso.
-o-
Contato: pradocel@gmail.com